Quando uma pessoa está em posição de muita autoridade, existe a possibilidade terrível de que ela use esse poder para seu próprio benefício, sem se importar com o respeito ou o consenso do próximo.
Infelizmente, o budismo não é uma exceção.
Descobrir a natureza da mente (ou “atingir a iluminação") não faz de ninguém uma pessoa boa, ruim ou omissa.
Ainda cabe a cada um refletir e encarar com responsabilidade as consequências de suas ações.
Muitos gurus, depois de muitos anos de devoção de seus discípulos, se sentem acima da moral e acabam se perdendo em comportamentos tóxicos e abusivos.
As vítimas podem encontrar muitos obstáculos para denunciar os abusos.
Não é fácil e nem trivial investigar e denunciar.
Principalmente porque há muita impunidade devido ao cunho religioso e divino dessas autoridades.
Dessa forma, é importante chamar atenção não só para os abusadores, mas também para os heróis que os expuseram!
Sabendo mais sobre como esses falsos gurus foram expostos pode ajudar a prevenir situações parecidas no futuro!
Como o falso guru Dennis Lingwood foi exposto?
Dennis Lingwood (ou Sangharakshita) fundou a ordem budista inglesa FWBO (Friends of the Western Buddhist Order) nos anos 60.
Atualmente chamada de comunidade Triratna, é um dos maiores grupos budistas do Reino Unido, com milhares de membros de diversos países e, em sua maioria, cheios da grana.
Já nos anos 80, a ordem foi acusada de manipular seus discípulos, o que levou ao encerramento das atividades de um dos templos.
Em 2009, durante uma entrevista, Lingwood comentou sobre relações sexuais com estudantes:
“Talvez em alguns casos os alunos não tenham consentido como deveriam. É possível. Eu não me considero um professor. Eu tive muitos encontros humanos, a maioria não sexuais. Grande parte desses encontros foram satisfatórios para ambas as partes. Se houve encontros em que eles não se sentiram satisfeitos, é uma pena e eu sinto muito que esse seja o caso”.
(Aliás, essa ordem é tão problemática que até recentemente havia um documento disponível online no site oficial sugerindo que relacionamentos entre os mestres e seus discípulos poderiam ser benéficos!)
A exposição real de Lingwood começou em setembro de 2016, quando um ex-discípulo, MARK DUNLOP, postou online sobre como ele foi manipulado por membros mais velhos da ordem quando ele tinha apenas 16 anos.
Mark contou como Lingwood encorajava que os homens experimentassem com a homossexualidade como forma de “desenvolvimento pessoal”.
Segundo Mark, ele sempre dizia:
“que odiava os avanços sexuais, mas Lingwood respondia que ele deveria continuar persistindo e não desistir”.
Em dezembro, todos ficaram surpresos quando Lingwood, aos 91 anos, confessou:
“sentia muita culpa pelas ocasiões que machucou ou magoou algum colega e pediu perdão”.
Logo depois, o caso tomou grandes proporções com a divulgação de uma investigação interna para o The Observer, um jornal inglês associado ao The Guardian.
Lá, 10 ex-discípulos testemunharam como experienciaram ou observaram abusos sexuais enquanto faziam parte da ordem, incluindo outros abusadores além de Lingwood.
A partir disso, outros jornalistas investigaram e coletaram evidências, documentos e entrevistas com os sobreviventes dos abusos, mostrando toda a sua extensão.
Outro membro alto na hierarquia da ordem chamado Munisha contou:
“todos sabiam que Lingwood tinha relações sexuais com membros da comunidade. Alguns dizem que eram muito felizes nesses relacionamentos e outros dizem que não, que eles não queriam e se sentiam confusos com os avanços do mestre”.
Membros da ordem compartilharam em seu site:
“Como parte do nosso compromisso de proteger o bem-estar de crianças e adultos vulneráveis, o responsável pela proteção dos membros da comunidade Triratna relatou o assunto aos serviços sociais no sul de Londres, de acordo com os requisitos formais do Reino Unido. Sempre que necessário, pedimos aos membros da ordem que cooperem plenamente com qualquer investigação, caso ocorra”.
(uma nota que parece escrita por advogados!)
Consequências
Alguns sobreviventes processaram membros da ordem, mas até o momento ninguém foi condenado.
Segundo as comunicações oficiais, a ordem iniciou diversas medidas para facilitar a conscientização, a denúncia de abusos e o apoio aos sobreviventes.
Dennis Lingwood já não tinha nenhuma função oficial na ordem desde 2000 então não teve que se afastar. Morreu em 2018 aos 93 anos e não foi legalmente acusado.
Mais informações sobre esse caso:
Como o falso guru Sakyong Mipham Rinpoche foi exposto?
Sakyong Mipham Rinpoche é o líder de uma das maiores organizações budistas ocidentais chamada Shambhala International.
Foi fundada em 1971 e, atualmente, tem mais de 200 templos em 30 países.
Esse caso foi uma surpresa total para os budistas!
Em 2017, ANDREA WINN, ex-discípula e sobrevivente do abuso da ordem, resolveu agir e iniciou um projeto pessoal chamado de “Buddhist Project Sunshine” ou o Projeto Budista Raio de Sol.
Seu objetivo era investigar as acusações de abuso de poder, assédios e, principalmente, má conduta sexual dentro da organização.
Durante um ano, ela coletou evidências e entrevistou sobreviventes: mulheres que contaram que são perseguidas há anos, apalpadas quando os mestres estavam bêbados e forçadas à atos sexuais.
Andrea coletou muitas informações porque conhecia todos os detalhes da Shambhala International.
Ela havia vivido toda a sua vida dentro da sua hierarquia, pois sua mãe era uma discípula desde antes de ela nascer.
Em 2018, ela publicou online as suas descobertas, que apontavam para Sakyong Mipham Rinpoche, além de problemas sistêmicos da organização.
Consequências
Desde a publicação do Buddhist Project Sunshine, muitas outras vítimas denunciaram as situações a que foram submetidos por membros da ordem.
Logo depois, Sakyong Mipham Rinpoche, na época com 55 anos, renunciou sua posição de líder e, segundo ele:
“entrou em um período de auto-reflexão”.
(não dá nem para acreditar na cara de pau desses falsos gurus!)
Pelo menos, a organização Shambhala reconheceu publicamente que havia um problema sistêmico de violência sexual em sua comunidade.
Isso culminou na renúncia de todos os membros nos altos cargos da organização, a adoção de novas regras e o início das investigações internas por uma agência independente.
Andrea Winn se tornou a porta-voz dos sobreviventes dos abusos da Shambhala International e continua seu trabalho como ativista.
Mais informações sobre esse caso:
Como o falso guru Sogyal Lakar foi exposto?
Este caso também foi exposto através de uma investigação independente!
Desta vez, o acusado foi o mais famoso mestre tibetano depois de Dalai Lama, Sogyal Lakar (ou Sogyal Rinpoche).
Sogyal vendeu milhões de cópias de livros e fundou a comunidade budista chamada Rigpa.
Tudo comecou em 1994, quando uma ex-discipula processou Lakar por abuso sexual, psicológico e físico. Este caso foi resolvido sem ir para julgamento, com um pagamento para a vítima.
Tudo parecia ir bem para Lakar durante décadas.
Porém, em 2017, duas movimentações aconteciam sem ele saber
.
Primeiro, 8 ex-discípulos e SOBREVIVENTES dos abusos de Lakar se uniram para escrever uma carta aberta online detalhando todos os abusos que sofreram.
Eles não divulgaram seus nomes reais, mas uma das porta-vozes é conhecida como Dakini Mimi.
Segundo, os outros membros da liderança da comunidade Rigpa contraram a empresa de advogados Lewis Silkin para começar uma investigação, coletar evidências e entrevistar as vítimas.
Esse furacão chegou para Lakar de uma vez só!
Os relatos registraram 22 SOBREVIVENTES dos abusos, entre eles, 13 ex-discípulos que eram submetidos a violência física regularmente, alguns diariamente.
Além disso, as evidências deixavam claro que o mestre usava sua autoridade para intimidar mulheres jovens e receber favores sexuais.
Ainda por cima, ele abusava de sua autoridade e manipulava as vítimas para que mentissem sobre esses abusos.
O relatório final da investigação foi divulgado em 2018 e demonstrou que Sogyal
“cometeu atos graves de abuso físico, sexual, psicológico e emocional. O mestre vivia uma vida cheia de luxúria, comida e prazer”.
(aliás, sonegou impostos e desviou dinheiro da comunidade também!)
Outros membros condenaram esses comportamentos dizendo que Lakar
“abusou de uma tradição espiritual ancestral para satisfazer o seu desejo por poder, dinheiro e prazer sexual”.
Consequências
Após a divulgação das conclusões da investigação independente, e a subsequente atenção da mídia, Lakar se aposentou em 2018.
Alguns dos sobreviventes dos abusos o processaram, mas ele não foi condenado criminalmente, já que os casos terminaram em acordos.
Faleceu na Tailândia em 2019, aos 72 anos.
A comunidade Rigpa mudou várias de suas regras e estabeleceu um código de conduta.
Como o guru Lama Norlha Rinpoche foi exposto?
Esse caso infelizmente é muito mais frustrante…
Lama Norlha Rinpoche fundou um monastério muito famoso de Nova York, chamado Kagyu Thubten Chöling.
A história da exposição de Norlha começou em 2016 quando 2 SOBREVIVENTES de abusos o denunciaram para as autoridades budistas.
Em 2017, ainda nada havia sido feito, então 6 discípulas se manifestaram e expuseram os abusos de Norlha em uma reunião que incluía 160 membros do monastério.
Elas descreveram como ele abusava de algumas delas há décadas!
Consequências
A liderança do monastério contratou uma consultoria independente com terapeutas a fim de conscientizar os membros da comunidade sobre violência, assédio sexual e etica. Porém, Norlha nunca participou de nenhum.
Em um dos workshops organizados pelo monastério, ele enviou um pedido de desculpas gravado em vídeo.
(patético!)
Em 2018, Norlha faleceu, aos 79 anos, sem ser condenado pelos seus crimes.
Como o guru Dagri Rinpoche foi exposto?
O último caso desse post ainda está acontecendo!
O acusado é Dagri Rinpoche, um monge tibetano e professor das famosas “Gelug school of Tibetan Buddhism” e da “Foundation for the Preservation of the Mahayana Tradition” (FPMT).
Essa história começou quando Dagri foi detido pela polícia indiana em 2019, após abusar sexualmente de uma mulher durante um vôo.
Logo depois, ele pagou fiança e foi liberado.
Em maio do mesmo ano, uma monja da escola Gelug, JAKARIA PEREZ VALDIVIA, postou um vídeo no YouTube acusando Dagri de abusar dela em 2008.
Em seguida, outra vítima postou sua experiência no Facebook e contou como ele apertava seus seios enquanto ela era uma estudante, entre 2005 e 2009.
E para terminar, em julho, um grupo de ex-discípulos postou uma carta aberta detalhando os abusos sexuais e de poder do falso guru.
Dagri Rinpoche alegou ser inocente e que era tudo um “mal-entendido”.
Sobre o grupo de ex-discípulos, disse que “eles eram um grupo tentando difamá-lo”.
Sua versão sobre a acusação de Jakaria é:
“ela o procurou para benzê-la porque ela estava com problemas físicos e mentais. Ele fez o ritual de purificação da água e o ritual de remoção dos obstáculos. Três anos depois, ela o acusou de tocá-la de forma inapropriada durante esses rituais.”
Após esse impasse e a repercussão da mídia, o Dalai Lama organizou uma reunião entre ele, Jakaria e Dagri em que ele se desculpou por seu comportamento abusivo.
No entanto, Jakaria diz que, depois dessa reunião, os membros da comunidade não acreditavam mais nela e no abuso que ela relatou.
Enquanto isso, Dagri continuou a ensinar…
(que raiva!)
Já em outubro, em resposta a toda essa controvérsia, a Fundação FPMT contratou o instituto FaithTrust para realizar uma investigação independente.
A investigação provou que Dagri tinha vários comportamentos abusivos que persistiram durante anos, incluindo assédio e violência sexual.
(e ele também desviou os fundos destinados às organizações)
Consequências
Em 2020, após o relatório final da investigação ser divulgado, Dagri foi afastado e não é mais professor da fundação FPMT.
O processo de investigação contra Dagri ainda está em andamento desde 2019.
No momento, ele está preso na Índia!
Mais informações sobre esse caso:
Porque toda essa impunidade?
A grande autoridade das organizações budistas é o Dalai Lama.
E, como vimos recentemente, ele não é nenhum exemplo da moral e do discernimento!
Já em 2018, Dalai Lama mostrava suas “bandeiras vermelhas” quando admitiu que já sabia dos abusos sexuais nas comunidades budistas desde o começo dos anos 90.
Disse
“essas acusações não são nada novas”.
E ele falou isso PARA sobreviventes de abusos.
Com um chefe desses, é até óbvio porque a situação está tão ruim!
E, por isso mesmo, os sobreviventes devem ser celebrados!
É apenas por causa da CORAGEM que eles tiveram que esses falsos gurus foram expostos.
Suas histórias devem continuar sendo compartilhadas para que novos abusos não se repitam.
Mais informações sobre o Dalai Lama:
Para ler mais profundamente sobre esse assunto recomendo o livro:
Mary Finnigan - Sex and Violence in Tibetan Buddhism
Outros casos de abusos não explorados neste post:
Guru Lama Surya Das: Buddhist teacher Lama Surya Das admits sleeping with adult students in past, says it was wrong
Guru Ogyen Trinley Dorje: Healing Our Sanghas: New Website Seeks Discussion of Karmapa Abuse Allegations
Guru Joshu Sasaki: Zen Buddhists Roiled by Accusations Against Teacher - The New York Times
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